A estética, como um braço da filosofia, abarca especialmente a filosofia da arte. A filosofia da arte, por sua vez, se debruça com grande afinco sobre a literatura, as artes plásticas, a música e, com menor afinco, pelo teatro. Mas, a dança, ainda é um tema sistematicamente ignorado pelos estudiosos da estética e suas publicações. Em grande medida as discussões gerais de estética e filosofia da arte raramente buscam seus exemplos e ilustrações na dança e quando o fazem é de maneira superficial e desdenhosa, como uma arte menor. Será que o seu caráter aparentemente transitório tenha levado a um esnobismo intelectual que não considera a dança digna de ser levada a sério?
De fato, os primeiros estudos antropológicos que associavam a dança aos rituais mágicos dos povos chamados primitivos, isto é, de uma cultura primeva – esbanjando eurocentrismo e preconceito –, não contribuíram em nada para despertar o interesse em se incorporar a dança em um “sistema de belas-artes”. Há também, dizem, uma dificuldade em se classificar “o que é dança” e, especialmente, em classificar a dança artística, esta última o interesse maior da estética.
Efetivamente, o cerne da estética da dança é o movimento humano e a corporeidade. Isto é, o movimento humano em todas as suas formas e contextos. Este pode ser lido, articulado, estudado, apreciado, desenvolvido. Estabelecer como isso acontece e dar um sentido para isso é assunto para a estética da dança.
Dar um sentido coerente para o movimento humano passa por compreender a ideia de mímesis inerente à ideia de dança. Entendendo mímesis mais como representação do que como imitação, ainda que a imitação esteja também presente. Desta forma, fugindo da ideia de mímesis platônica e ficando com a ideia aristotélica – que faz uma breve passagem sobre a dança no capítulo inicial de sua Poética –, a representação é um modo fundamental da cognição humana. A dança, enquanto representação, é capaz de demonstrar ações, emoções e condutas por meio do movimento sincronizado do corpo. Mas, a filosofia da dança se debruça especialmente sobre a dança artística que, entre tantas características que podem distingui-la do mero ato de mexer o corpo ao som de um ritmo, está o objetivo de ser vista. A arte só se torna arte quando alguém a vê: assim é também com a dança. E uma ação artística é considerada dança se o meio principal utilizado para chegar ao objeto artístico final for o corpo humano em movimento, ainda que hoje em dia a dança e a performance estejam fluidamente alinhadas e suas definições e diferenciações sejam difíceis de atribuir.
Mas, ainda que uma arte seja de difícil classificação, isto não deve ser motivo para ignorá-la, ao contrário, deveria instigar. O que nos leva a outro ponto importante para pensarmos a exclusão da dança dos textos filosóficos sobre arte: A dança sempre foi vista dentro da sociedade ocidental como uma arte feminina.
Ainda que na Grécia antiga, berço de nossa filosofia, era comum os homens dançarem, podemos dizer que, ao menos, desde o período medieval – e sua famigerada caça às bruxas – que a dança, entre tantas outras coisas, foi atribuída ao comportamento feminino e diminuída, esnobada, como “coisa de mulher”. Pegando como exemplo uma grande arte do passado, a literatura, e uma grande arte do presente, o cinema, todos os seus “grandes nomes” são masculinos (com exceções, é claro, mas isso não faz diferença aqui). Já na dança, nós temos grandes nomes femininos, tais como Loïe Fuller, Isadora Duncan, Martha Graham. Ainda que, quando homens escrevem sobre dança, estes adoram ressaltar os feitos de outros homens, como Rudolf Laban ou Merce Cunningham. Realmente, eles foram também geniais, mas não mais precursores que as mulheres nesta arte. Loïe Fuller, por exemplo, foi a precursora do uso da iluminação como parte da cena em espetáculos. Por causa dela, a iluminação cênica se desenvolveu e transformou o modo de fazer teatro. Isadora Duncan rompeu o padrão estético do balé clássico e Martha Graham é considerada o Picasso da dança, tamanho impacto que sua arte causou na sociedade de seu tempo. Todas elas foram vanguarda, mas quais delas estão entre os nomes de vanguarda dentro de nossos estudos em filosofia da arte e estética? Nenhuma.
Se a filosofia quer (e precisa) avançar e se transformar, deixar o ranço branco, masculino, eurocêntrico de lado, especialmente em países que se encontram, pejorativamente, na periferia do pensamento mundial, como é o caso do Brasil e se, a meu ver, já estamos em um movimento nesse sentido, pois estamos incorporando em nossas grades de ensino o estudo de mulheres filósofas, de filosofias não europeias e discutindo uma filosofia decolonial, (e aí, talvez, possamos falar também de uma filosofia brasileira, mas isso é assunto para outro momento), ela precisa também incorporar dentro de seus estudos estéticos a dança, com o peso e a grandeza que ela merece: como arte.
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